segunda-feira, 30 de abril de 2012

Cadê a literatura?

O que será que Jorge Luis Borges, Julio Cortázar ou Adolfo Bioy Casares diriam se caminhassem pelos stands da Feira do Livro de Buenos Aires, que começou na última semana na capital argentina e vai até o próximo dia 7 de maio?
No mínimo, que algo vai mal no mundo das letras local. É certo que o evento tem uma boa programação artística, com a presença de renomados autores internacionais, como o mexicano Carlos Fuentes, o israelense David Grossman e o argentino Juan Gelman, entre outros.
Porém, o que mais se vê na feira não são livros de literatura, mas sim "instant books" sobre política. Esse filão sempre foi mais forte aqui do que no Brasil, e revela uma inquietação local típica a princípio bastante louvável.
Cada escândalo de corrupção, cada novo personagem público, cada eleição e cada pequeno trauma social argentinos imediatamente fazem com que, em apenas alguns meses, surja um título sobre o assunto no mercado.
O que parece estar surgindo como tendência é que as grandes editoras daqui estão mais dependentes desses "instant books". São eles os carros-chefe das representações de cada uma delas, acompanhados por grandes e chamativas publicidades, e mesas-redondas de lançamentos que reúnem um monte de jornalistas, como debatedores, como público, por fim, também como consumidores. Consequentemente, elas têm boa acolhida na imprensa e com isso, uma excelente divulgação.
No primeiro fim de semana do evento, os livros sobre política contemporânea foram as estrelas. Houve debates sobre o best-seller "La Cámpora" (Sudamericana), que conta a história do grupo kirchnerista de ascensão meteórica --do qual saiu Axel Kicillof, o rosto da expropriação da petroleira YPF. E também de "Él y Ella" (Planeta), outro sucesso de vendas, sobre o casal Néstor e Cristina Kirchner.
Ambas as narrativas são críticas ao kirchnerismo. Porém, não muito longe dali, o vice-presidente, Amado Boudou, acusado de tráfico de influências e longe de ser um romancista, abria o stand do governo praticamente sem falar de livros e com um inflamado discurso levantando a bola de Cristina e da nacionalização da YPF.
Nos mostradores, os "instant books" ofuscam os livros de prosa, que dirá de poesia. Os campeões em número de títulos são o casal presidencial, mas também há muitos sobre as Malvinas, os montoneros, o golpe militar de 1976, os desaparecidos, a lei de mídia do governo, o "Clarín", a Papel Prensa, etc...
Durante a semana, a feira abrigará debates de lançamento de "Zonceras Argentinas", do ex-chefe de gabinete kirchnerista, Anibal Fernández, "Malvinas - Descolonização, Paz e Soberania", "El Ascenso de la Izquierda", "Más Estado, Mejor Estado", "Néstor por Todos" e muitos outros.
Os "instant books" são, em geral, obras construídas para um público que assiste muita TV e que acompanha o nervoso noticiário local.
Nada contra a reflexão sobre temas contemporâneos, muito pelo contrário. Seria saudável se no Brasil houvesse a metade de títulos sobre a realidade atual que existe na Argentina. Muitos até são sérias investigações jornalísticas, que não encontram lugar nos jornais, comprometidos numa luta política com o governo.
Mas a exploração desse filão, que é lucrativo, obviamente _o livro sobre La Cámpora vendeu 60 mil exemplares, a biografia de Cristina Kirchner, "La Presidenta", quase 70 mil-, está ofuscando a literatura mais tradicional.
Com público mais reduzido e, assim, representando um risco de investimento, a ficção literária já não parece ser um bom negócio para editoras grandes. Isso se reflete não só na feira do livro, um passeio pelas livrarias de Buenos Aires basta para notar como o fenômeno se repete.
Não parece ser uma tendência que se repita no Brasil, os dois mercados editoriais parecem bem diferentes _não se vê, aqui, por exemplo, uma inserção tão grande dos livros de auto-ajuda ou técnicos.
É de se lamentar que a literatura argentina, tão imensa e importante, fique num segundo plano num evento comercial de grande público como este.
Talvez seja melhor que Borges, Cortázar e Bioy Casares não estejam aqui para ver esse espetáculo.
                                                                                                                         Por SylviaColombo

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